Daniel Ellsberg, um analista militar que depois de experimentar uma epifania antiguerra no chão de um banheiro tomou a importante decisão de revelar, em 1971, a história secreta de mentiras e enganos americanos sobre a Vietnã, no que ficou para a História como o caso dos Papéis do Pentágono, morreu nesta sexta-feira (16) em sua casa em Kensington, Califórnia, aos 92 anos.
A causa foi câncer de pâncreas, disseram sua esposa e filhos em um comunicado.
A divulgação dos Papéis do Pentágono — um compilado de 7 mil páginas do governo com revelações contundentes sobre enganos de sucessivos presidentes que excederam sua autoridade, contornaram o Congresso e enganaram o povo americano sobre o que se passava no Vietnã — mergulharam a nação já dividida pela guerra em uma cenário caótico.
As contramedidas ilegais da Casa Branca para desacreditar Ellsberg, impedir vazamentos de informações do governo e atacar supostos inimigos políticos, levaram a uma constelação de crimes, incluindo o que ficou conhecido como escândalo Watergate, que levou à renúncia do presidente Richard Nixon.
A história do vazamento dos documentos e da batalha jurídica de jornais americanos, como o The Washington Post e o The New York Times, contra o governo Nixon pelo direito de publicar os documentos foi retratada no drama “The Post — A guerra secreta”, de 2017. A Suprema Corte dos EUA deu ganho de causa à imprensa, apoiada pela Primeira Emenda, desconsiderando o caso da Casa Branca, que tentava caracterizar a divulgação como um ato de espionagem que colocava em risco a segurança nacional.
Ellsberg também foi acusado pessoalmente de espionagem, conspiração e outros crimes, e julgado no tribunal federal de Los Angeles. Mas, na véspera das deliberações do júri, o juiz rejeitou o caso, citando má conduta do governo, incluindo escutas telefônicas ilegais, uma invasão no escritório do ex-psiquiatra de Ellsberg e uma oferta do presidente Nixon para nomear o próprio juiz como diretor do FBI.
— A desmistificação e a dessacralização do presidente começaram — disse Ellsberg após ser solto. — É como a destituição do Mágico de Oz.
Um caminho até o topo
A história de Daniel Ellsberg refletiu em muitos aspectos a experiência americana no Vietnã, que começou na década de 1950 como uma luta para conter o comunismo na Indochina e terminou em 1975 com uma derrota humilhante em uma guerra corrosiva que matou mais de 58 mil americanos e milhões de vietnamitas, cambojanos e laocianos.
Ele era um jovem brilhante de Michigan que conheceu a tragédia aos 15 anos, quando sua mãe e irmã morreram em um acidente de carro depois que seu pai adormeceu ao volante, e que se recuperou a ponto de ser assumido em uma escola preparatória, Harvard e na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, com altas honras e ambições elevadas e disciplinadas.
Ele se juntou aos fuzileiros navais em 1954, passou pela escola de candidatos a oficiais e estendeu seu alistamento para embarcar com seu batalhão para o Oriente Médio, para a crise de Suez, em 1956. Ele não entrou em ação, mas se afirmou como um primeiro-tenente com ideias firmes sobre soluções militares para problemas internacionais.
Ele obteve um doutorado em Harvard, ingressou na RAND Corporation e começou a estudar a teoria dos jogos aplicada a situações de crise e guerra nuclear. Na década de 1960, ele conferiu as respostas de Washington à crise dos mísseis cubanos e aos ataques norte-vietnamitas a navios americanos no Golfo de Tonkin.
Em 1964, Ellsberg era conselheiro do secretário de Defesa, Robert S. McNamara. À medida que o envolvimento americano no Vietnã se aprofundava, ele foi a Saigon em 1965 para avaliar os programas de pacificação civil. Juntou-se ao major-general Edward G. Lansdale, o especialista em contrainsurgência, e por 18 meses acompanhou patrulhas de combate nas selvas e aldeias.
Ponto de virada
O que Ellsberg viu deu início à sua transformação. Foi além do fracasso em conquistar os corações e as mentes dos sul-vietnamitas. Foi um número crescente de mortes de civis, prisioneiros torturados e aldeias incendiadas, uma ladainha de brutalidade registrada em relatórios de campo militar como “operações de limpeza e contenção”.
— Vi que era muito difícil para aquelas pessoas — disse ele à colunista Mary McGrory. — Mas eu disse a mim mesmo que viver sob o comunismo seria mais difícil, e a Terceira Guerra Mundial, que pensei que estávamos evitando, seria pior.
Para McNamara, Ellsberg previu uma perspectiva sombria de morte e destruição contínuas, terminando talvez com uma retirada americana e vitória do Vietnã do Norte. Seus relatórios não deram em nada. Mas McNamara o convocou em 1967, com 35 outros, para compilar uma história do conflito do Vietnã.
Sua contribuição para o estudo foi relativamente modesta. Mas ele ficou profundamente perturbado com suas conclusões abrangentes: que sucessivos presidentes haviam ampliado a guerra enquanto ocultavam os fatos do Congresso e do povo americano. Em 1968, Ellsberg voltou para a RAND, mas começou a agir discretamente em suas mudanças de opinião, redigindo declarações de política de guerra para a corrida presidencial do senador Robert F. Kennedy e participando de conferências antiguerra.
Em agosto de 1969, ele foi a uma reunião da War Resisters League no Haverford College, na Pensilvânia, e ouviu um orador, Randy Kehler, anunciar com orgulho que logo se juntaria a seus amigos na prisão por recusar o recrutamento.
Profundamente comovido, Ellsberg chegara ao limite, como recordou em “As palavras certas na hora certa” (2002), da atriz Marlo Thomas. “Saí do auditório e encontrei um banheiro masculino deserto”, disse ele. “Sentei-me no chão e chorei por mais de uma hora, apenas soluçando. A única vez na minha vida em que reagi a algo assim.
Ellsberg começou a se opor abertamente à guerra. Ele escreveu cartas para jornais, juntou-se a protestos contra a guerra, redigiu artigos e testemunhou em julgamentos de resistentes ao recrutamento. Ele também se demitiu da RAND Corporation, sob pressão.
De militar a delator
Com Anthony J. Russo Jr., um colega da RAND que ele conheceu no Vietnã, Ellsberg, que tinha uma autorização de segurança ultrassecreta, fotocopiou o estudo de 47 volumes do Pentágono. Ainda acreditando que poderia trabalhar dentro do sistema, Ellsberg em 1970 deu cópias parciais ao senador J. William Fulbright, presidente do Comitê de Relações Exteriores, e outros no Congresso. Todos se recusaram cautelosamente a agir.
Frustrado, desiludido e ciente de que poderia estar cometendo um crime e poderia ser enviado para a prisão, Ellsberg abordou Neil Sheehan, um veterano correspondente do The New York Times que ele conheceu no Vietnã, com os documentos. A transferência era um assunto delicado. Em um relato que foi retido a seu pedido até depois de sua morte, em 2021, Sheehan contou a uma colega do Times, Janny Scott, uma história dramática de como ele obteve o furo de reportagem (de 7 mil páginas) de sua vida.
Ellsberg, disse ele, primeiro concordou em entregar os papéis se o Times os publicasse e fizesse o possível para proteger a identidade de sua fonte. Mas quando Sheehan chegou a um apartamento em Cambridge, Massachusetts, onde os papéis estavam guardados, Ellsberg mudou os termos, dizendo que Sheehan poderia estudar os papéis e fazer anotações, mas não fotocopiá-los. Ele deu a Sheehan a chave do apartamento e deixou a cidade.
Sheehan, acreditando que os papéis eram “propriedade do povo” e pagos com “o sangue de seus filhos”, como ele disse, quebrou o acordo, fez cópias e levou um conjunto para Nova York, onde equipes de repórteres e editores trabalharam em uma suíte de hotel 24 horas por dia durante semanas, para preparar o tesouro de segredos nacionais para publicação. Ellsberg não soube da duplicidade até 13 de junho de 1971, quando o Times publicou a primeira das nove partes de trechos e artigos analíticos sobre os Documentos do Pentágono. A reação foi rápida.
O procurador-geral John N. Mitchell, citando estatutos de espionagem e conspiração, alertou o Times de que isso havia colocado em risco a segurança nacional e disse que o jornal enfrentava ações legais ruinosas. Editores, advogados e o editor do Times, Arthur O. Sulzberger, se reuniram e decidiram retomar a publicação. Após a terceira parte, porém, o Ministério Público obteve uma liminar, suspendendo a publicação.
Enquanto isso, Ellsberg vazou os papéis para outras publicações, incluindo o The Washington Post. O governo processou os jornais, e o Times e o Post levaram seus casos à Suprema Corte, que suspendeu a liminar em 30 de junho, permitindo a retomada da publicação. O caso reforçou a doutrina constitucional de que a imprensa, na ausência de uma emergência nacional, não deveria estar sujeita à censura pré-publicação.
Em março deste ano, quando anunciou que tinha sido diagnosticado com um câncer pancreático inoperável e que seus médicos haviam lhe dado uma estimativa de três a seis meses de vida, Ellsberg direcionou seu último comunicado aos “caros amigos e apoiadores”.
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