Na Idade Média, a maioria dos cachorros tinha um emprego. No livro De Canibus, John Caius, médico e estudioso inglês do século 16, descreveu uma hierarquia de cães que ele classificou, em primeiro lugar, de acordo com sua função na sociedade humana.
No ápice dessa hierarquia estavam os cães de caça especializados – incluindo os galgos, conhecidos por sua “incrível agilidade” – e os cães-de-santo-humberto (ou bloodhounds), cujo poderoso olfato os levava “por longas estradas, caminhos tortuosos e cansativos” em busca de suas presas.
Mas até mesmo os “vira-latas” que ocupavam os últimos degraus da escada social canina eram caracterizados em termos de trabalho ou status. Por exemplo, como artistas de rua ou turnspits em cozinhas – estes segundos corriam em rodas que giravam para assar carne.
O lugar dos cães na sociedade mudou quando a caça se tornou um passatempo aristocrático, em vez de uma necessidade. Simultaneamente, os cães passaram a ser bem-vindos nos lares nobres, especialmente pelas mulheres. Em ambos os casos, os cães eram significantes da posição social da elite.
De fato, em seu ranking, Caius posiciona os cães que moravam dentro das casas, que eram “delicados, arrumados e bonitos”, abaixo dos cães de caça e acima dos vira-latas comuns, devido à sua associação com as classes nobres. Quanto aos filhotes: “quanto menores, mais prazer provocam”.
Embora a igreja formalmente desaprovasse animais de estimação, os clérigos muitas vezes possuíam cães. Assim como as mulheres, os cachorros dos clérigos eram geralmente cães de colo, ideais para suas atividades internas.
Em louvor aos cães
Nem todos tinham tanto afeto por cachorros. Preocupadas com a violência potencial, as autoridades urbanas na Inglaterra regulamentavam a posse de cães de guarda, assim como entretenimentos populares violentos, como caça ao javali, luta com ursos e touradas.
Na Bíblia, os cães são frequentemente caracterizados como carniceiros sujos. Provérbios 26:11 famosamente descreve como esses animais se voltavam ao próprio vômito.
Por outro lado, a história de São Roque na “Legenda Áurea”, uma coleção popular do século 13 de vidas de santos, conta sobre um cachorro que levou pão a um santo faminto e depois curou suas feridas lambendo-as. Um dos atributos santos de Roque, um motivo pelo qual as pessoas o reconhecem, é um cão devotado.
O tema de cães defendendo seus donos ou lamentando os mortos pode ser rastreado até o período clássico, em textos como a “História Natural” de Plínio, o Velho.
Esse tópico é repetido na tradição do bestiário medieval, um compêndio moralizador de conhecimento sobre animais reais e míticos. Uma história comum fala do lendário Rei Garamantes, que, capturado por seus inimigos, é rastreado e resgatado por seus cães fiéis. Outra conta sobre um cão que identifica publicamente o assassino de seu mestre e o ataca.
A história de um galgo, Guinefort, até inspirou um culto não oficial de santo. No século 13, o inquisidor e pregador dominicano Estêvão de Bourbon descreveu uma família nobre que, erroneamente acreditando que o cão havia matado seu bebê, matou Guinefort em retaliação.
Ao descobrir a criança ilesa (na verdade, o cachorro a havia salvado de uma cobra venenosa), eles honraram o cão “martirizado” com um enterro adequado, levando à sua veneração e alegados milagres de cura. Embora a história de Estêvão pretendesse revelar o pecado e a loucura da superstição, ela destaca ainda assim o que as pessoas medievais percebiam como as qualidades especiais que distinguem os cachorros de outros animais.
De acordo com o Bestiário de Aberdeen (datado por volta de 1200): “Nenhuma criatura é mais inteligente do que o cachorro, pois os cães têm mais entendimento do que outros animais; apenas eles reconhecem seus nomes e amam seus mestres”.
A associação entre cães e lealdade também é expressa na arte da época, incluindo em relação a casamentos. Em monumentos túmulos, representações de cães indicam a fidelidade de uma esposa ao marido que está ao seu lado.
No caso de túmulos clericais, no entanto, eles podem sugerir a fé do falecido, como o arcebispo William Courtenay (falecido em 1396), enterrado na Capela da Trindade, na Catedral de Canterbury. A efígie de alabastro de Courtenay repousa sobre um túmulo no lado sul da capela. O arcebispo veste as vestes e a mitra de seu cargo, e dois anjos sustentam sua cabeça almofadada. Um cachorro de orelhas longas usando uma coleira com guizo repousa obedientemente a seus pés.
Embora seja tentador imaginar se o cachorro representado no túmulo de Courtenay pode ter sido um animal de estimação real do arcebispo, a coleira com guizo era uma convenção popular da iconografia contemporânea, especialmente para cães de colo.
Cachorros mimados
Assim como seus equivalentes modernos, os donos de cães medievais com recursos providenciavam uma variedade de acessórios para seus companheiros, incluindo coleiras, casacos e almofadas feitas de materiais finos.
Esse investimento material era importante para a cultura aristocrática do “vivre noblement” (a arte de viver nobremente), na qual o consumo deliberado de bens de luxo demonstrava publicamente o status de alguém.
Percepções populares sobre a posse de cães e seus acessórios também alimentavam estereótipos de gênero. Enquanto os homens eram mais propensos a possuir cachorros ativos para a proteção de suas vidas e propriedades, as mulheres preferiam os cães de colo, que elas podiam acarinhar e mimar. Cachorros de pequeno porte, então, também podiam ser associados à ociosidade e vício femininos, como visto na pintura Alegoria da Vaidade de Hans Memling (feita por volta de 1485).
Mas mesmo os cães de trabalho precisavam de cuidados meticulosos e atenção para desempenharem seu melhor papel. Uma miniatura em uma cópia luxuosa do livro influente Livre de la Chasse, de Gaston Phébus, do século 15, mostra atendentes de canil examinando os dentes, olhos e ouvidos dos cães, enquanto outro lava as patas de um “bom garoto”.
Fonte: Revista Galileu, adaptado pela equipe Cães e Gatos VET FOOD.
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