Com maior acesso a cuidados médico-veterinários, a esperança média de vida dos animais de companhia tem aumentado exponencialmente nas últimas décadas. Contudo, animais geriátricos levantam vários desafios à classe e o médico-veterinário Gonçalo da Graça Pereira nota um dos mais frequentes nos consultórios: a síndrome de disfunção cognitiva.
Por mais que queiramos parar o envelhecimento, o certo é que isso não é possível. Nem nos humanos, nem nos animais de companhia é possível parar o ciclo da vida. Assumindo isso, a perspectiva pode ser outra na forma como se encara a passagem dos anos, pois, como repetiu Gonçalo da Graça Pereira por várias vezes ao longo da palestra que realizou no Congresso WSAVA 2023, dedicada ao tema “Cognitive Dysfuntion Syndrome: can we stop agieng”, “o envelhecimento não é doença”.
O que o especialista europeu em Medicina Comportamental quis realçar é que se os animais de companhia têm, hoje, maior esperança média de vida e isso se deve, em grande parte, ao empenho dos médicos-veterinários e ao acompanhamento que fazem ao longo da vida do animal. “Significa que estamos fazendo um bom trabalho”, assegurou o especialista português à plateia.
E as estatísticas divulgadas demonstram o reflexo desse trabalho das equipes médico-veterinárias, com os dados citados pelo palestrante a revelarem que “25% a 50% dos cães na Europa tem mais de sete anos e com gatos as estatísticas provavelmente dirão que serão ainda mais e mais idosos”, referiu apontando outros dados: nos Países Baixos, 40% dos cães tem mais de oito anos e no Reino Unido 10% dos gatos tem mais de 15 anos
Contudo, ao viverem mais tempo, tal como acontece com os humanos, os animais também apresentam mais problemas e desafios na prática clínica relacionados com a idade avançada e a questão que se coloca cada vez mais ao profissional da Medicina Veterinária é assegurar que o ciclo normal da vida dos animais de companhia, que cada vez mais se alonga, seja vivido com qualidade e com a abordagem compreensiva e colaborativa por parte dos tutores.
Apostar no diagnóstico precoce da SDC
No entanto, mesmo com uma população geriátrica em crescimento, Gonçalo da Graça Pereira acredita que a síndrome de disfunção cognitiva (SDC) nos animais de companhia está subdiagnosticada na prática clínica. Por um lado, existe um tutor que, na maioria dos casos, considera algumas das alterações no comportamento do animal como normais do avançar da idade e, por isso, não as aborda com o médico veterinário assistente.
“Quantos clientes nos chegam com queixas sobre disfunção cognitiva?”, questionou à plateia, que reconheceu não ter muitos casos de tutores que falem abertamente sobre o assunto. Provavelmente, os sintomas e comportamentos já estão instalados há algum tempo e o tutor considera-os como normal ou pensa que, por se tratar de um animal sénior, este não poderá aprender coisas novas ou reaprender algumas que já faziam parte da dinâmica familiar.
E se o conhecimento sobre o envelhecimento científico sobre a SDC em cães é um pouco mais extenso, por estes serem utilizados há largos anos em estudos sobre a Doença de Alzheimer em humanos, “o envelhecimento em gatos continua a ser um pouco misterioso”, reconheceu Gonçalo da Graça Pereira. Ainda assim, parece ser comum que os gatos por volta dos 10, 11 anos de idade comecem a demonstrar alguns sinais de envelhecimento cognitivo, contudo, aparentemente as alterações neuronais iniciam-se por volta dos seis, sete anos.
Nessa medida, acredita o orador, “podemos fazer muito mais [pelos animais] se fizermos o diagnóstico precocemente” e, para isso, há que apostar nos check-ups regulares. Não obstante, nesta matéria, a atenção dos profissionais continua a recair, na maioria das vezes, na saúde física, em garantir o melhor estado geral do animal, deixando para segundo plano as questões da capacidade cognitiva e, por isso mesmo, o especialista europeu sugeriu aos profissionais presentes que não esquecerem a componente cognitiva nos check-ups que realizam aos animais que vigiam – questionando diretamente os tutores sobre o comportamento animal – já que o diagnóstico precoce dos problemas cognitivos ajuda a “prevenir complicações” e a “aumentar a qualidade de vida do animal”.
Para ajudar os profissionais na prática clínica, o orador abordou o acrónimo DISHAA que pode ser uma estratégia para questionar o tutor sobre as alterações no comportamento do animal de companhia. Cada letra corresponde a possíveis problemas que o animal pode estar a viver, como a desorientação no espaço que conhece anteriormente [disorientation], as alterações na interação com o tutor e a família [interaction], as questões do sono [sleep], as alterações no comportamento – como defecar dentro de casa [house soiling] – que acontecem por irem perdendo as aprendizagens, na capacidade para realizar determinadas atividades [activity] e a presença de momentos de ansiedade [anxiety], muito prevalentes em animais com SDC.
O diagnóstico diferencial deve ser um princípio orientador da atividade do profissional de medicina veterinária, pois só assim é possível ir excluindo as várias possíveis causas que podem estar na origem da modificação do comportamento do animal, numa abordagem que, na opinião do palestrante, deve ser holística e olhar para o animal na sua globalidade, da saúde física à saúde mental e comportamental.
Sobre as alterações neuronais que acontecem nos animais de companhia, o especialista reconheceu que existem algumas semelhanças com o que acontece com os humanos, nomeadamente na Doença de Alzheimer, sobretudo no que diz respeito ao hipocampo. Sendo esta região do cérebro muito importante nas emoções, na aprendizagem e na memória, se o seu funcionamento estiver comprometido vai comprometer a capacidade cognitiva dos animais, tal como acontece nas pessoas.
O especialista europeu apontou ainda o papel da enzima monoamina oxidase B (MOB), que é responsável pelo funcionamento de alguns neurotransmissores, no desenvolvimento da SDC pois quando há um aumento desta enzima este reflete-se num comprometimento a função neuronal.
É ainda de referir que com o passar dos anos existe uma diminuição do sistema colinérgico que vai contribuir para o declínio cognitivo e para as alterações no sono.
Como abordar terapeuticamente a SDC?
Quanto à abordagem clínica desta condição, Gonçalo da Graça Pereira garantiu que já é possível fazer muito por estes animais mais idosos e muito embora a SDC não tenha uma cura específica, quanto mais cedo se iniciar o acompanhamento, mais se consegue fazer pela qualidade de vida do animal.
A começar por aquilo a que o orador chamou de estimulação cerebral, que mais não é do que a reeducação do animal que, em consequência dos processos neurológicos mencionados, perdeu as referências do que aprendeu. “Às vezes, não precisamos de ter um campeão de obediência, mas com alguns exercícios podem estimular estes animais [com novas aprendizagens], porque o que estes cérebros necessitam é de estimulação”, explicou o orador. Para isso, é necessário recorrer a alguns exercícios específicos para cada espécie e adaptados ao animal em específico e, sobretudo, é fundamental que os tutores acreditem que este, apesar da idade, ainda pode aprender coisas novas, desde que devidamente estimulado e motivado.
O enriquecimento ambiental é igualmente fundamental, sendo importante adaptar o espaço em que o animal vive às capacidades que tem no momento, estimulá-lo com jogos e brincadeiras que o mantenha motivado, e apostar no exercício físico que o mantenha ativo e estreite ainda mais a relação com o tutor.
Sobre a farmacoterapia para a SDC, tal como acontece nos humanos com demências, esta ainda está numa fase muito precoce de desenvolvimento para tratar a SDC. Existem duas famílias de fármacos que apresentam resultados: a nicergolina, do grupo dos vasodilatadores, e a selegilina, um dopaminérgico que inibe a MOB, sendo esta última mais usada nos casos mais avançados da disfunção.
Ainda neste campo da abordagem terapêutica da SDC, a nutrição também desempenha um papel importante, nomeadamente no aporte de nutrientes fundamentais à função neuronal, sobretudo na proteção do hipocampo, como é o caso da vitamina E e da vitamina C, assim como o recurso à suplementação com micronutrientes que podem ajudar a controlar sintomas.
Em suma, já existem algumas respostas farmacológicas e as estratégias para melhorar a qualidade de vida do animal de companhia estão disponíveis para médicos veterinários e tutores aplicarem na prática clínica e na vida diária das famílias. E apesar de “o envelhecimento ser algo que não conseguimos parar”, lembrou o orador, há uma série de recursos que ajudam esta população em crescimento nos consultórios a viver melhor a idade geriátrica e até a reaprender algumas das capacidades que estava a perder em virtude do envelhecimento.
Fonte: Veterinária Atual, adaptado pela equipe Cães e Gatos VET FOOD.
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