Pelé costumava falar sobre si em terceira pessoa. Criava uma distinção entre Edson Arantes do Nascimento, de carne e osso, e o apelido de quatro letras, denominação de uma figura quase imaculável. O “quase” só existe porque a imagem do maior jogador de futebol não se resume apenas ao que ele fez dentro de campo. O que gera novas divisões. Do “Pelé no Brasil” ao “Pelé no exterior”. O “Pelé jogador” e o “Pelé personalidade”. As várias facetas do Rei.
Pelé passou por algumas polêmicas na vida pessoal, como a que envolve o reconhecimento de paternidade de uma das filhas, Sandra Regina. Outras acabaram respingando nele, como o do filho Edinho, preso no passado por lavagem de dinheiro e tráfico de drogas.
No Brasil, o Rei também se acostumou a lidar com assuntos delicados sobre sua participação em pautas políticas. Ele foi atuante na luta dos direitos dos atletas, com a criação da Lei Pelé, em 1998, período em que foi ministro extraordinário dos esportes, pasta criada pelo então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Uma espécie de recompensa por décadas antes ter se omitido do debate.
“Fui covarde quando jogava. Só me preocupava com a evolução da minha carreira”, desabafou na ocasião. Sobre a mudança na legislação, que desvinculou o passe dos jogadores ao clube, disse que “foi um passo muito à frente, para o qual os dirigentes não estavam preparados”.
Em compensação, pesou (e ainda pesa) sobre si críticas pelo silêncio em algumas pautas raciais e sociais – embora, nos últimos tempos, o ex-jogador tenha se posicionado de forma mais direta, principalmente por meio das redes sociais. Há, ainda, insatisfações antigas por conta de Pelé ter sua imagem atrelada indiretamente à ditadura militar. “Brasileiro não sabe votar”, chegou a dizer durante o período. Anos depois, contudo, chegou a posar para uma foto com uma camisa em que estava estampada a frase “Diretas Já”, apoiando movimento civil de reivindicação por eleições presidenciais diretas no Brasil, nos anos 80.
Pelé também teve uma carreira artística. Participou de filmes, novelas, chegou a gravar músicas, uma delas com Elis Regina, e já esteve em um especial com outro rei (dos palcos): Roberto Carlos. Tem um longa-metragem: “Pelé Eterno“, fora comerciais e ações que mostravam que o maior jogador da história também gostava de atuar em outros gramados.
No exterior, Pelé tem uma imagem praticamente irretocável. “Meu nome é Ronald Reagan, sou o presidente dos Estados Unidos da América. Mas você não precisa se apresentar, porque todo mundo sabe quem é Pelé”, brincou certa vez o chefe de Estado do país norte-americano, em visita do brasileiro à Casa Branca. O Rei, inclusive, atuou na nação durante sua passagem pelo Cosmos, no fim da carreira.
Em 1981, recebeu o prêmio de “Atleta do Século”, do jornal francês L’Equipe. Foi recebido por papas, condecorado Cavaleiro do Império Britânico, equivalente ao título de “Sir”, pela rainha da Inglaterra, Elizabeth II. É embaixador da Unicef. Lista grande de honrarias.
Em entrevista à Folha de Pernambuco, antes do falecimento do ex-jogador, o jornalista Juca Kfouri frisou que Pelé possuía um maior reconhecimento fora do Brasil. “É normal que, em vida, a pessoa mostre seus defeitos, fragilidades. Meu pai sempre dizia: ‘você não pode esperar que ele seja Deus. Se ele também for politicamente consciente, por exemplo, jogando do jeito que ele joga, ele passa a ser um Deus. O mundo admira Pelé, mas ele está distante das questões do dia a dia que nós conhecemos aqui no Brasil. Ele já foi mais conhecido do que a Coca-Cola, do que os Beatles “, afirmou.
Como símbolo do ápice no esporte, Pelé viu, ao longo do tempo, seu nome ser colocado lado a lado com o de outros jogadores na disputa sobre quem seria o maior craque do futebol. Maradona foi durante muitos anos seu principal “oponente”. Atualmente, Messi, ainda em atividade, voltou a acirrar o debate. Um reconhecimento do que o Rei foi, mas, de certa forma, uma tentativa de deixá-lo mais “mortal”.
“É um anacronismo. Difícil comparar em épocas diferentes. Existe uma tradição oral que aumenta o mito de Pelé. Talvez um dia vão dizer que ele não foi isso tudo. Meu pai falava que Leônidas era o maior até o Pelé aparecer. Mas eu acho que, nos tempos de hoje, Pelé seria ainda melhor do que foi. Com o gramado de agora, a chuteira, o preparo físico…se você me pergunta: faltando 10 segundos para o fim do jogo, eu dou a bola para Messi ou Pelé? Eu respondo Pelé. É a mesma coisa do basquete. LeBron James é extraordinário, mas quem viu Michael Jordan sabe que ele era diferente. Não são somente os títulos, mas sim o jeito de fazer as coisas. A forma sublime que faz eles serem especiais”, declarou Kfouri.
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